domingo, 23 de dezembro de 2012

A Inquisição

Conselho Federal de Medicina Veterinária persegue profissionais que defendem tratamento da leishmaniose
Por Victor Barone  
Fotos: Elis Regina

A cassação do mandato da presidente do
Conselho Regional de Medicina Veterinária
de Mato Grosso do Sul (CRMV-MS), Sibele
Luzia de Souza Cação, oficializado no último dia 17, foi o ápice de uma política de perseguição patrocinada pelo Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV) e pelo Ministério da Saúde contra os profissionais que defendem o ratamento da leishmaniose no Brasil. 


O argumento do CFMV é que Sibele defendeu publicamente o tratamento de cães portadores de leishmaniose, além de ter arquivado três pedidos de investigação contra o médico veterinário André Luiz Soares da Fonseca. Membro da Comissão de Leishmaniose do CRMV/MS, professor de Imunologia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), sócio fundador do BRASILEISH - Grupo de Estudos sobre Leishmaniose Animal e doutorando em Doenças Tropicais no Instituto de Medicina Tropical de São Paulo, André Luiz é um dos maiores pesquisadores da doença no País e defensor ferrenho do seu tratamento. Em consequência, tornou-se o principal alvo das ações do CFMV.

“O Conselho Regional foi coagido pelo CFMV a abrir um processo contra mim depois de ter arquivado três. Agora descontaram na Sibele. O CFMV diz que eu faço o tratamento e o divulgo pela internet. Estou divulgando sim. Estou contradizendo o CFMV. Eles dizem que não há tratamento para a leishmaniose, eu digo que tem, e que dá para fazer o tratamento sem violar a portaria do Ministério da Saúde”, afirmou o veterinário.
André Luiz diz que vai enfrentar as consequências de sua convicção profissional na legalidade do tratamento: “Sei que haverá uma perseguição. Tenho plena consciência disso. Tenho também plena consciência de que eu estou agindo com absoluta legalidade. Pode haver uma irregularidade no CFMV, uma perseguição? Não há dúvida. Mas me disponho a enfrentar isso. Também sou advogado, conheço meus direitos e vou me defender”, disparou o pesquisador. 

André Luiz diz que vai enfrentar as consequências de sua convicção profissional na legalidade do tratamento: “Sei que haverá uma perseguição. Tenho plena consciência disso. Tenho também plena consciência de que eu estou agindo com absoluta legalidade. Pode haver uma irregularidade no CFMV, uma perseguição? Não há dúvida. Mas me disponho a enfrentar isso. Também sou advogado, conheço meus direitos e vou me defender”, disparou o pesquisador. 



Sibele, por sua vez, se prepara para entrar com um recurso contra sua cassação: “Eles agiram de forma equivocada. Vou à justiça em busca de reparação. Em meus pronunciamentos acerca da leishmaniose, eu sempre busquei informar corretamente a sociedade sobre as formas de transmissão, prevenção e controle, afirmando que é necessário que o Poder Público tenha ações mais efetivas para tirar a leishmaniose da classificação de zoonose negligenciada. Sobre o tratamento, falei apenas a verdade, fruto de conhecimentos que adquiri ao longo de anos de estudos e participação em seminários, simpósios, palestras, fóruns e congressos”, explicou.

Política do massacre  

De acordo com o CFMV, o posicionamento de Sibele teve como desdobramento uma representação encaminhada pelo Ministério Público Federal do Estado do Mato Grosso do Sul (MPF/MS). Segundo a assessoria de imprensa da entidade, os 27 Conselhos Regionais de Medicina Veterinária do País entendem que o tratamento da Leishmaniose Visceral em animais está efetivamente proibido, pois, atualmente, não existe nenhum medicamento fabricado ou certificado no País que seja eficaz no tratamento e na cura da doença.

O posicionamento da entidade atende à legislação federal, sanitária e criminal; e à determinação do Ministério da Saúde e do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, por meio da Portaria Interministerial n° 1.426/2008, que classifica a eutanásia como único recurso seguro no combate à doença.

Muitos pesquisadores, no entanto, discordam desta política de massacre. Na verdade a Portaria 1429/2008 não proíbe o tratamento do animal, ela proíbe o uso de medicamento de uso humano específico para tratamento da leishmaniose. Para André Luiz isso acontece justamente pela falta de uma visão técnica clara. “Não existe remédio veterinário ou remédio humano, o remédio existe para tratar uma doença, ele age, por exemplo, sobre o DNA do parasita e não sobre o DNA do ser humano, então não tem lógica querer proibir. A Portaria simplesmente veta, em termos, o uso dos medicamentos tradicionais para o controle da leishmaniose”.

Sacrifício não controla a doença. Em novembro de 2011, durante audiência pública promovida sobre o tema na Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara Federal, o presidente da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, Carlos Henrique Nery Costa, apresentou estudos realizados no Espírito Santo, na Bahia e no Piauí que demonstram que não houve diminuição no número de pessoas infectadas por leishmaniose com o sacrifício de cães. Ele recomendou a suspensão do programa de eliminação de cães por falta de evidências da sua efetividade. por leishmaniose com o sacrifício de cães. Ele recomendou a suspensão do programa de eliminação de cães por falta de evidências da sua efetividade. 

André Luiz reforça: “O abate sanitário não é controle adequado para a leishmaniose em lugar algum do mundo. Os trabalhos científicos são claros. A eutanásia não resolve o problema, porque a leishmaniose é doença vetorial. E controle de doença vetorial se faz sobre o vetor, o mosquito. É como a dengue. Se sua esposa chega em casa com dengue, de nada adianta mandá-la para a casa da sogra, pois a causa é o mosquito da dengue, que está na sua casa. O cão com leishmaniose é um indicativo de que há infestação de mosquitos na região. O procedimento correto seria dar tratamento ao cão, fazer a desinsetização do local e um levantamento no entorno para averiguar se há outros animais doentes e focos do mosquito”. 

O doutor em parasitologia pela Universidade de Minas Gerais, Vítor Ribeiro também defende que seja dado o direito aos donos dos cães de optar pelo tratamento. “A eutanásia do cão é realizada na Europa em cima de uma decisão do proprietário, da gravidade da doença do animal, da possibilidade de ele cuidar do animal ou não, mas o tratamento assumido pelo proprietário é altamente viável”, explicou. 

O deputado federal Geraldo Resende (PMDB-MS) apoia esta linha de ação. Ele apresentou o projeto de lei 1738/2011, que prevê o fim da obrigatoriedade de sacrifício de animais infectados pela leishmaniose. De acordo com a proposta, o sistema de saúde pública deve implantar uma política nacional de vacinação e tratamento de animais. “A prática do sacrifício indiscriminado é inaceitável na Europa. Em diversos países existem estudos científicos e mobilização de médicos veterinários e criadores de cães contra esta ação”, explicou.
Segundo o deputado, há diversos protocolos de trabalhos científicos exitosos nesta área: “Além disso, me parece mais racional tratar a exterminar cachorros e gatos. Vamos lutar pela vacinação dos animais, bem como a possibilidade de curar os animais infectados”, propôs.

500 mil cães sacrificados em Campo Grande

Fosse uma solução eficiente, a matança de animais já teria resolvido o problema em Campo Grande. Na capital do Mato Grosso do Sul, a população canina estimada é de 135 mil cães. Destes, calcula-se que 28 mil tenham leishmaniose. “Não é uma epidemia, é uma pandemia causada pela falta de foco do governo”, afirma André Luiz. Estima-se que de 1998 até hoje foram mortos mais de 500 mil cães em Campo Grande. O CCZ local mata em média de 100 a 120 cães por dia. Ainda assim, um levantamento realizado com base em números do Ministério da Saúde aponta que a leishmaniose matou 194 pessoas no estado entre 2000 e 2011.

"Matança indiscriminada de cães com leishmaniose não diminuiu a incidência da doença no Mato Grosso do Sul"

Se há estudos clínicos e pesquisas científicas atestando a possibilidade do tratamento de cães infestados pela leishmaniose, por que o Ministério da Saúde insiste na política de abate sanitário? Para André Luiz, trata-se de uma questão de orgulho: “Essa política foi implantada há mais de 15 anos, mas os resultados não apareceram. E agora, até por uma questão de moral desses técnicos envolvidos, voltar atrás seria reconhecer incompetência. Por isso, por uma questão até de falta de brilho ético, por uma questão até de vaidade e de orgulho, eles não querem voltar atrás nessa decisão, mas eles sabem que o abate sanitário é ineficaz”, acusou.

O “Ricardo Teixeira” da veterinária

O CFMV tem se colocado na linha de frente desta política equivocada. Veterinários que preferiram ter sua identidade preservada disseram à reportagem que o Conselho age como uma camarilha. Seu presidente, Benedito Fortes de Arruda – uma espécie de Ricardo Teixeira da veterinária – está no comando da instituição há 20 anos. “Ele e a patota dele agem mancomunados com o Ministério da Saúde, como um órgão consultivo do ministério. Não representam a medicina veterinária, mas os interesses do Ministério”, afirma um veterinário que pediu para ter sua identidade preservada.

Com a política inquisitória promovida pelo CFMV, a tendência é de que o tratamento, que sempre foi feito de forma velada – e com sucesso - na maioria das clínicas veterinárias, seja interrompido. O resultado não será a diminuição dos índices de infestação da doença, pelo contrário. Muitos tutores, unidos aos seus animais por laços de afeto, vão passar a tratá-los em casa, sem o auxílio de médicos veterinários, o que pode aumentar a disseminação da doença.

“O sacrifício de cães é mais maléfico que benéfico, já que por motivações afetivas ou econômicas, muitos proprietários se recusam a entregar seus animais e os escondem, colocando a população em risco”, diz o deputado Geraldo Resende.

CCZ ameaça tutoresA política de pressão também se abate sobre a população. Em Campo Grande, o CCZ age como uma “polícia sanitária”, usando até mesmo a coação moral para fazer com que tutores entreguem seus cães. Uma das estratégias é ameaçar o cidadão com a aplicação de multas. “Cheguei a receber três ligações do CCZ dizendo que eu seria multada em R$ 15 mil se não entregasse o meu meu cão”, afirma uma tutora que teve seu cão diagnosticado com a doença pelo Centro. Ela, que trata seu animal em uma clínica veterinária, se recusou a ceder. "Não entrego meu cão de jeito algum", garantiu. cão”, afirma uma tutora que teve seu cão diagnosticado com a doença pelo Centro. Ela, que trata seu animal em uma clínica veterinária, se recusou a ceder. "Não entrego meu cão de jeito algum", garantiu.

Na verdade, a multa varia entre R$ 300 e R$ 15 mil e, se de fato fosse aplicada, seria pelo seu valor mínimo. “O que ocorre é uma pressão violenta feita pelo poder público para aplicar a política de extermínio da população canina. É mais fácil matar que tratar. Este equívoco ocorre em todo o País devido à política do Governo Federal”, afirma um veterinário.

Enquanto a estratégia do Ministério da Saúde para o tratamento da leishmaniose canina não sai do obscurantismo, milhares de animais continuarão sendo sacrificados diariamente no País. Um dos pontos de pressão para esta mudança está nas redes sociais onde milhares de cidadãos e entidades de proteção aos animais têm se manifestado contra o abate sanitário.

Salvem o Scooby

Um destes movimentos tenta salvar a vida do cão Scooby, um dos protagonistas do processo que culminou na cassação de Sibele Cação. O caso de Scooby uniu a sociedade campo-grandense na luta contra os maus tratos aos animais e, por tabela, contra o sacrifício de animais com leishmaniose.

Scooby foi amarrado a uma moto e arrastado até o CCZ pelo tutor, que suspeitava que o cão estivesse com a doença. A mobilização da população no Facebook diante de tamanha crueldade salvou a vida de Scooby. Ele recebeu tratamento adequado e os ativistas a promessa do prefeito de Campo Grande, Nelson Trad Filho, de que seria permitida sua adoção pela ex-presidente do Conselho Regional de Medicina Veterinária.

Com a cassação de Sibele, a palavra do prefeito ficou à deriva. O cão foi entregue ao CCZ no último dia 19 e até o fechamento desta edição não havia informações sobre seu destino. Sibele protocolou o pedido de adoção no CCZ e no Ministério Público Federal.

“O relatório final do tratamento do Scooby foi entregue pessoalmente ao prefeito, pela veterinária responsável pelo tratamento, onde foi demonstrada a eficácia do tratamento com todos os exames normais, inclusive pesquisa de parasita negativo. Somente a sorologia ainda permanece reagente, o que é considerado normal pelos especialistas, que afirmam que a sorologia pode levar meses para negativar”, afirmou Sibele.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Presidente do CRMV-MS tem mandato cassado por defender o tratamento de cães com Leishmaniose

O Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV) cassou o mandato da presidente do Conselho Regional de Medicina Veterinária em Mato Grosso do Sul (CRMV/MS), Sibele Cação, por causa do posicionamento dela em defender e incentivar o tratamento da leishmaniose visceral canina. A doença também pode atingir os humanos.

Em nota, o CFMV informou que a decisão foi tomada por causa das declarações públicas da ex-presidente da classe em Mato Grosso do Sul. A veterinária Sibele Cação seria a favor do tratamento de animais infectados com leishmaniose.

Até setembro, segundo a Secretaria Estadual de Saúde (SES), foram registrados 278 casos de leishmaniose humana em Mato Grosso do Sul, 14 mortes foram causadas pela doença. Dados da SES mostram que há casos registrados de leishmaniose em mais de 50% dos municípios de Mato Grosso do Sul.

A leishmaniose é uma doença crônica, causada por protozoário leishmania. Comum em cães, é transmitida ao homem por mosquitos flebotomíneos que se alimentam de sangue. Nos cães, os principais sintomas são: fraqueza, queda de pelo, febre e feridas permanentes. Já no ser humano é caracterizada por lesões na pele, podendo também afetar nariz, boca e garganta. Ela também pode afetar o fígado, baço e a medula óssea. Caso não seja tratada pode levar a morte.

A grande polêmica que existe em torno da doença é a maneira como o Ministério da Saúde faz o controle dos animais infectados. Em Campo Grande, o combate a leishmaniose é feito pelo Centro de Controle de Zoonoses (CCZ) - os agentes borrifam veneno nas residencias para eliminar o mosquito transmissor. Eles também coletam amostras de sangue dos animais e, se o diagnóstico for positivo, é feita uma contraprova e, caso o resultado seja o mesmo, o animal é sacrificado.

A assessoria de imprensa do CRMV/MS informou que não está autorizada a comentar o assunto. A reportagem da TV Morena também tentou falar com a veterinária Sibele Cação, mas não teve retorno.
Confira a nota na íntegra:

“Frente aos questionamentos sobre os motivos que levaram à cassação do mandato da ex-presidente do Conselho Regional de Mato Grosso do Sul (CRMV/MS), o Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV) esclarece:

Em agosto deste ano, a presidente do Conselho Regional de Medicina Veterinária do Mato Grosso do Sul, à época, Dra. Sibele Luzia de Souza Cação, foi a público para defender e incentivar o tratamento da Leishmaniose Visceral Canina, por meio de entrevistas concedidas à imprensa e da divulgação do assunto nos veículos de comunicação interna do CRMV/MS (portal e informativo institucional).

Tal posicionamento teve como desdobramento uma representação encaminhada pelo Ministério Público Federal do Estado do Mato Grosso do Sul (MPF/MS) ao Conselho Federal de Medicina Veterinária. O CFMV e todo o Sistema CFMV/CRMV’s, que compreende os 27 Conselhos Regionais de Medicina Veterinária em todo o País, entende que o tratamento da Leishmaniose Visceral (LV) em animais está efetivamente proibido, pois, atualmente, não existe nenhum medicamento fabricado ou certificado no País que seja eficaz no tratamento e na cura da LV.

O posicionamento institucional do Sistema CFMV/CRMV’s atende à legislação federal, sanitária e criminal; e à determinação do Ministério da Saúde e do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, por meio da Portaria Interministerial n° 1.426/2008, que classifica a eutanásia como único recurso seguro no combate à doença.

Dessa forma e com base nos esclarecimentos citados, o CFMV entende que o posicionamento adotado pela ex-presidente do CRMV/MS contrariou os aspectos técnicos e éticos do tema, vulnerabilizando a sociedade e confrontando o papel institucional e social do Sistema CFMV/CRMV’s. O Conselho Federal entende, ainda, que o Médico Veterinário tem um papel extremamente importante para a saúde humana e deve atuar, também, para garantir a segurança da população.



NOTA

Hoje no Brasil todos os animais com "suspeita" de Leishmaniose devem ser mortos, e o tratamento é proibido.

Não há estudos que comprovem que matar animais resolva o problema, uma vez que a prática da matança acontece há décadas e o índice de casos humanos só tem aumentado.

A Organização Mundial de Saúde NÃO recomenda a eutanásia como forma de controle da doença

Cerca de 48%, dos resultados dos exames atualmente realizados nos cães, tem resultado falso positivo.

O BRASIL É O ÚNICO PAÍS NO MUNDO QUE MATA CÃES COM LEISHMANIOSE... TODOS OS OUTROS TRATAM A DOENÇA

Escreva para o CFMV:

http://www.cfmv.org.br/portal/fale_conosco.php

Prezados Senhores,

Ao contrário do que tem sido divulgado, a OMS e vários pesquisadores questionam a eficácia do sacrifício de animais como medida de combate à doença, visto que mesmo com a matança de animais por sucessivos anos, o número de pessoas infectadas com a doença só tem aumentado.

O Brasil é o único país do mundo que mata animais com leishmaniose como forma de controle da doença. E os resultados globais apresentados pelo Ministério da Saúde denotam que a adoção de tal técnica não tem obtido os resultados esperados.

Passou da hora de discutirmos, de forma ética e responsável, outro caminho a ser tomado em nosso país, desta forma poderemos desenvolver técnicas mais eficazes para diminuir a disseminação da LVC, possibilitando o controle ético e humanitário da doença e o correto tratamento em seres humanos.

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

De 2000 para cá, leishmaniose visceral matou mais que a dengue em nove Estados


Desde que a epidemia de dengue se intensificou no país, há alguns anos, todo mundo ouve o Ministério da Saúde anunciar medidas de combate ao mosquito Aedes aegypti. Mas pouca gente sabe o que tem sido feito para combater o Lutzomyia longipalpis, espécie de mosquito-palha responsável por uma doença que, de 2000 a 2011, causou mais mortes que a dengue em nove Estados – a leishmaniose visceral.
Também conhecida como calazar, a doença, que antes era limitada a áreas rurais e à Região Nordeste, hoje encontra-se em todo o território e, segundo especialistas ouvidos pelo UOL, está fora de controle. Levantamento feito com base em números do Ministério da Saúde mostra que, nos últimos 11 anos, a leishmaniose provocou 2.609 mortes em todo o país, enquanto a dengue foi responsável por aproximadamente 2.847 mortes (veja quadro abaixo).
O médico Carlos Henrique Costa, presidente da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, professor da Universidade Federal do Piauí e autor de vários estudos sobre a leishmaniose visceral, conta que doença era considerada tipicamente rural até 1980. A partir de então, a enfermidade começou a invadir algumas cidades grandes, como Teresina (PI) e São Luís (MA). Em pouco tempo, passou a afetar áreas urbanas de outras regiões, como Belo Horizonte (MG), Campo Grande (MS), Araçatuba e Bauru (SP), entre outras.
Sudeste
A expansão da doença no Sudeste, região mais populosa do país, preocupa ­ ­- os dados indicam que o total de casos quase dobrou de 2000 para 2011 (foram 314 e 592, respectivamente). E, o que é mais alarmante, o número de mortes foi quase seis vezes maior: saltou de 9 para 52.  

2000 A 2011: MORTES POR DENGUE X MORTES POR LEISHMANIOSE VISCERAL

Unidades da FederaçãoMortes por dengue*Mortes por leishmaniose visceral**
Rondônia461
Acre200
Amazonas420
Roraima176
Pará116153
Amapá130
Tocantins22173
Maranhão114334
Piauí35178
Ceará258268
Rio Grande do Norte8555
Paraíba2131
Pernambuco136117
Alagoas7358
Sergipe6453
Bahia156280
Minas Gerais177445
Espírito Santo1086
Rio de Janeiro5663
São Paulo258168
Paraná445
Santa Catarina-0
Rio Grande do Sul-0
Mato Grosso do Sul65194
Mato Grosso13245
Goiás26228
Distrito Federal178
  • Fonte: Sinan/Ministério da Saúde
  • *Atualizado em 31/01/2012 - dados sujeitos a alteração
  • **Até 2006 as mortes referem-se a UF de residência; a partir de 2007 foram consideradas mortes segundo UF fonte de infecção
A situação mais preocupante é a de Minas, que de 2000 a 2011 registrou 445 mortes pela doença - o número de vítimas da dengue não chega a metade disso.
O vetor já se instalou na periferia de Belo Horizonte, segundo especialistas. “Houve um ‘boom’ de condomínios com grandes jardins e essa terra provavelmente foi trazida de locais com presença do L. longipalpis”, afirma o pesquisador Reginaldo Brazil, do Instituto Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro.
Estudos sugerem que a leishmaniose visceral canina precede casos da doença em humanos no Brasil. Se a hipótese for verdadeira, a periferia de São Paulo também corre risco de virar foco, já que há registros de animais contaminados em cidades vizinhas como Campinas e Embu das Artes. Cidades um pouco mais distantes, como Araçatuba, são consideradas endêmicas (casos ocorrem frequentemente na região) há bastante tempo.
Recentemente, um foco importante da leishmaniose também foi encontrado em um canil no cemitério do Caju, na zona norte do Rio de Janeiro. Segundo a Secretaria Municipal de Saúde, todos os animais – ao todo 26 cachorros – foram sacrificados e o ambiente foi dedetizado. “O local vem sendo monitorado constantemente e nenhum outro caso foi notificado até o momento”, informou a pasta.
Adaptação
Uma vez que a espécie de mosquito-palha causadora da leishmaniose visceral acompanhou a migração populacional para o Sudeste, como um mosquito do campo foi capaz de se adaptar tão bem ao ambiente urbano?
Existem várias hipóteses, nenhuma delas comprovada. “Alguns pesquisadores acreditam que se trata de uma população de vetores geneticamente distinta”, diz Costa.
Mas também pode ser que o L. longipalpisseja simplesmente um inseto de fácil adaptação. “É um vetor robusto, que teve capacidade de se adaptar às mudanças do homem”, sugere Brazil.
Inseticida
Os famosos “fumacês” promovidos para combater a dengue não ajudam a combater o mosquito-palha? Infelizmente, não. O pesquisador do Instituto Oswaldo Cruz explica que o  L. longipalpis é mais noturno - aparece depois que o fumacê já passou, e os inseticidas usados para controlar oAedes não têm efeito residual. “O vetor percebe o cheiro e se esconde”, descreve. Ou seja: o fumacê pode até desalojar o vetor da leishmaniose temporariamente, mas não o elimina.
A substância mais eficaz para o controle doL. longipalpis é o DDT, que também já ajudou muito o Brasil no combate à malária, mas o composto foi banido por causar riscos à saúde e ao meio ambiente.
“Os piretroides, usados atualmente, também são tóxicos para humanos, mas bem menos que o DDT”, diz a biomédica Clara Lúcia Mestriner, professora associada de parasitologia da Universidade Federal de São Paulo.
Os inseticidas disponíveis hoje, no entanto, parecem não ter tanta eficácia contra o vetor, de acordo com o presidente da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical. Além disso, há outras limitações, como a possibilidade de o inseto se tornar resistente.
Material orgânico
Medindo de 2 a 3 milímetros, o L. longipalpis é um inseto que gosta de sombra e material orgânico em decomposição. A destinação incorreta do lixo, tão comum no país, é o chamariz perfeito para o vetor. Mas não é o único foco.
Se é fácil achar o Aedes aegypti, que deposita suas larvas em locais onde há acúmulo de água, a missão é mais ingrata no caso do vetor da leishmaniose, cujas larvas podem estar escondidas na terra, ao lado de um arbusto ou de uma árvore frutífera.
As preferências e a capacidade de adaptação do vetor fazem com que a doença não esteja restrita a áreas de pobreza e sem saneamento, apesar do estigma. Mas essa é a população que continuará a ser a mais prejudicada, já que a doença é mais grave em pessoas com saúde debilitada e baixa nutrição.

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

O desafio de superar as doenças tropicais. Entrevista especial com Carlos Henrique Nery Costa

“Até hoje nós vemos os trópicos através do espelho do Norte. Nós conhecemos a Índia pelo que é publicado na imprensa europeia, ou seja, pelas percepções culturais dos europeus”, aponta o médico.

Confira a entrevista. 


Para compreender a crescente proliferação das doenças tropicais, é fundamental “estudar a saúde nas favelas e nas grandes cidades tropicais. Esse é um passo importante a ser dado para compreendermos esse problema, que é gravíssimo, mas que ainda não temos conhecimento da sua dimensão”, assinala o médico e professor da Universidade Federal do Piauí, Carlos Costa à IHU On-Line, em entrevista concedida por telefone. Segundo ele, embora ainda não seja possível identificar o que “está por trás dessa proliferação das doenças tropicais”, sabe-se “que esse fenômeno está de certo modo relacionado com a superpopulação”. 

Costa
 enfatiza que as doenças tropicais estão diretamente relacionadas com as más condições de saneamento básico nas comunidades e com a precarização da vida urbana. Em sua avaliação, a globalização econômica não favoreceu “uma globalização social, porque o capital procura ambientes em que exista mão de obra mais barata para se desenvolver, e não considera as condições de vida das pessoas e dos trabalhadores. Como o Estado não taxa as empresas, ele não arrecada. Nesse processo de globalização, a arrecadação é restrita à indústria, que oferece emprego, mas o Estado não tem condições de proteger as populações. Essa é a raiz do 'enfavelamento' e também, de certo modo, da proliferação de algumas doenças”.

Também em sua avaliação, Costa diz que a erradicação das doenças perpassa pelo desafio de os países tropicais superarem a dependência das indústrias farmacêuticas dos países do Norte, que têm uma ótica “assistencialista”, e tampouco se preocupam em “erradicar o problema principal, que é a pobreza”. “Está na hora de reverter esse quadro. Brasil, Índia, Austrália, Arábia Saudita e México já têm riquezas suficientes para fazer um grande consórcio de pesquisa voltado para essas doenças e liderar a pesquisa da malária, da leishmaniose, da dengue”, salienta. 

Carlos Henrique Nery Costa é médico, formado pela Universidade de Brasília – UnB. É mestre em Medicina Tropical e doutor em Saúde Pública Tropical pela Harvard University. É professor da Universidade Federal do Piauí, médico do Instituto de Medicina Tropical Natan Portella, e Presidente da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical. 

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O que são as doenças tropicais e quais estão em maior evidência no país?

Carlos Henrique Nery Costa 
(foto) – As doenças tropicais têm uma definição bastante ampla, tratando-se de doenças que ocorrem exclusivamente ou, com mais frequência, nos trópicos ou onde não foram devidamente controladas. Entre as doenças tropicais mais importantes hoje em dia, destaca-se a Aids, surgida na África. Entre as doenças tropicais existem outras muito sérias como a tuberculose, ligada às condições precárias nas grandes cidades e nas favelas. Por outro lado, ao contrário da Aids e da tuberculose, a malária é uma doença rural, transmitida por mosquitos, e hoje está restrita aos trópicos. Essa é uma doença gravíssima que, na África, por exemplo, ainda mata milhares de crianças. Outra importante doença tropical reemergente nos trópicos é o cólera, uma doença que se desenvolve onde não existe saneamento básico adequado ou onde a vulnerabilidade das pessoas é muito grande. As principais epidemias por conta dessa doença ocorrem no Haiti, na Índia e na África, ao sul do Saara. Mais de 10 mil pessoas morreram de cólera nos últimos dois anos no Haiti. Existem outras doenças, como a de Chagas, que é uma doença brasileira, a febre amarela, a leishmaniose, a verminose, que proliferam entre populações em situação de vulnerabilidade, geralmente aquelas abandonadas pelo Estado.

IHU On-Line – Alguns pesquisadores evidenciam que o mundo vive uma transição epidemiológica de muitas doenças que estão deixando as áreas rurais e se urbanizando. Em que consiste essa transição e por quais motivos ela está acontecendo?

Carlos Henrique Nery Costa
 – Entre o final do século XIX e início do século XX, quando a Inglaterra era uma potencia colonial, além da independência dos países da África e da Ásia, houve uma grande diáspora rural, o que aconteceu mais cedo nos países desenvolvidos, depois na Índia, no sudeste da Ásia, na China e, posteriormente, de forma exuberante, na África. Só que, além do processo de atração das migrações, como acesso a emprego, outros fenômenos acompanharam esse processo de urbanização: nos anos 1980 os países em desenvolvimento tiveram um crédito provisório e depois tiveram uma cobrança monetária, que deu origem, por sua vez, à crise no Terceiro Mundo. Posteriormente, o que arruinou a África foi a revolução verde, iniciada pela descoberta dos fertilizantes químicos. Mas mais importante do que isso foi o fato de os países desenvolvidos começarem a subsidiar fortemente a agricultura, porque dispunham de uma produção tecnológica avançada. A partir do momento em que os produtos agrícolas começaram a entrar no terceiro mundo, a agricultura de subsistência ficou mais cara, as pessoas passaram a perder qualidade de vida e deram início a um processo de migração para as cidades. Com esse processo migratório, o cenário das doenças tropicais mudou da zona rural empobrecida para as cidades, e surgiram novas doenças, como Aids, tuberculose, cólera, malária urbana e leptospirose. Pode-se dizer que houve uma série de fenômenos de natureza econômica, geopolítica, social e cultural que levaram as populações para as cidades. Ocorre que esse processo migratório gerou um excedente populacional, que não encontrou local de habitação adequada. Evidentemente, as pessoas mais pobres foram abandonadas pelo Estado e passaram a se aglomerar em favelas. Para se ter ideia, ainda hoje de 10 a 15% da população brasileira vive em favelas. Na África e na Ásia, esse percentual deve ser ainda maior. Esse é um cenário novo que os países dos trópicos têm de encarar.

IHU On-Line – Por que doenças como a febre amarela, que já se considerava erradicada, encontram terreno fértil para se desenvolverem nas favelas e grandes centros urbanos?

Carlos Henrique Nery Costa
 – Alguns fenômenos nós ainda não compreendemos. Entre o ressurgimento de novas doenças tropicais, o mais surpreendente é a urbanização do calazar. Essa doença entrou no Brasil na década de 1980, nas cidades de Teresina e São Luís, onde surgiram epidemias que se espalharam para o resto do país. 90% dos casos de calazar no Brasil são oriundos da zona rural do Nordeste. A doença também se espalhou para cidades do Sudeste e Centro-Oeste, como São Paulo, Belo Horizonte, Brasília, São Borja (Rio Grande do Sul) e parece que está chegando a Uruguaiana em breve, e possivelmente em Buenos Aires, também.

Ainda não sabemos o que está por trás dessa proliferação das doenças tropicais, mas sabemos que esse fenômeno está de certo modo relacionado com a superpopulação. Veja o caso das favelas: elas são habitadas por dezenas de pessoas que vivem em um mesmo ambiente. Então, doenças como tuberculose proliferam em ambientes em que as pessoas estão mais vulneráveis, onde não há saneamento básico. As doenças infecciosas também estão nesses lugares. Por exemplo, a leptospirose é uma doença que ocorre no mar, por causa da urina dos ratos, mas na época das chuvas, ela se espalha nas favelas.

IHU On-Line – Muitos pesquisadores enfatizam que, sem reduzir as desigualdades sociais, o Brasil não resolverá o problema das doenças tropicais. Que relações estabelece entre a proliferação de doenças e as más condições de saneamento básico? Em que medida as melhorias no saneamento também representam a prevenção destas doenças?

Carlos Henrique Nery Costa
 – É surpreendente como o Brasil não se interessa por questões fundamentais da vida social, como ainda não existem no país escolas públicas de turno integral, por exemplo. Por que o Estado ainda delega ao traficante a gestão das favelas, e por que não saneia esses ambientes? As populações que vivem nesses locais são completamente marginalizadas pelo Estado.

Por que razão o Estado não investe e não melhora as condições de saneamento, não sei. Realmente existe um excedente populacional, que a economia industrial não foi capaz de absorver. Não existe emprego para todos, e o Estado não é forte o suficiente para proteger a população e reverter esse quadro. Mas essa não é a realidade apenas do Brasil. Acontece também em Jacarta, na Indonésia, em Nairóbi, no Quênia, entre outras cidades. 

Houve uma globalização econômica, mas não houve uma globalização social, porque o capital procura ambientes em que exista mão de obra mais barata para se desenvolver, e não considera as condições de vida das pessoas e dos trabalhadores. Como o Estado não taxa as empresas, ele não arrecada. Nesse processo de globalização, a arrecadação é restrita à indústria, que oferece emprego, mas o Estado não tem condições de proteger as populações. Essa é a raiz do “enfavelamento” e também, de certo modo, da proliferação de algumas doenças. O Brasil precisa investir em uma política voltada para a saúde na favela, que é um problema grave.

Além das doenças tropicais, a poluição das grandes cidades também tem gerado inúmeros problemas de saúde; os acidentes de motocicletas talvez sejam um dos problemas mais graves de saúde pública do Brasil hoje. A saúde não encara esse fato como problema de saúde pública; ela ainda delega esse caso ao trânsito, aos legisladores, aos engenheiros.

IHU On-Line – É possível diagnosticar em que estados brasileiros o saneamento básico enfrenta maiores desafios?

Carlos Henrique Nery Costa
 – Essa situação não está mapeada, mas sabe-se que as condições de saneamento básico são mais frágeis em regiões do Norte e Nordeste. Entretanto, nas favelas do Sul e do Centro-Oeste também inexiste saneamento, e doenças como tuberculose aparecem, porque há um ambiente tropical propício para elas se desenvolverem. 

IHU On-Line – Como as doenças tropicais são abordadas no sistema de saúde brasileiro? Elas são negligenciadas?

Carlos Henrique Nery Costa
 – Existe um esforço para preveni-las, mas ainda são bastante negligenciadas. O conceito negligenciado surgiu nos anos 2000 a partir de uma publicação holandesa que denunciava a negligência da indústria farmacêutica com algumas doenças. As doenças negligenciadas são aquelas que ocorrem em pequenas quantidades, em países remotos, com pessoas pobres, que não participam ativamente do mercado de medicamentos. Depois, algumas pessoas começaram a falar de doenças tropicais para as populações negligenciadas, ou seja, para aproximadamente um bilhão de pessoas que vivem em situação muito precária. E, por fim, passou-se a mencionar as doenças que são pouco pesquisadas.

No Brasil, existe uma preocupação maior com duas doenças tropicais: a dengue e a leishmaniose, que é o calazar. Essas doenças continuam se expandindo e nós não temos perspectiva de controle. Estão providenciando vacinas para essas doenças, e talvez isso gere algum resultado, porque a solução tradicional, de educar as pessoas para a retirada do foco da dengue, por exemplo, não tem funcionado. O calazar é ainda pior, porque, além de matar mais pessoas por ano – entre 200 e 250 –, segue inexorável a despeito de qualquer medida de saúde pública. Matam-se os cães contaminados para tentar controlar a expansão da doença. Embora isso tenha sido eficaz, não foi capaz de erradicá-la.

Tem havido um esforço para erradicar as doenças tropicais, mas ele ainda é muito tímido, comparado com a China, por exemplo, que se livrou desse problema de saúde pública há 40 ou 50 anos. O Brasil continua sendo uma nação negligente com seu próprio povo; uma nação rica com o povo pobre. O investimento em saneamento, educação e outros benefícios sociais acabariam resultando na prevenção dessas doenças.

Os médicos estão razoavelmente treinados para lidar com as doenças tropicais, mas enfrentam outros problemas, como a fragilidade da terminalidade do SUS, que é a atenção médica. Como o Estado é fraco, não existe uma política de excelência, não existe uma política de integridade. Então, o que prolifera é a negligência do serviço público, que se manifesta através da fragilidade de diagnósticos, a realidade do tratamento etc. 

IHU On-Line – E o fato do SUS ter uma política tímida de prevenção à saúde também contribui para a proliferação dessas doenças?

Carlos Henrique Nery Costa
 – Geralmente, a qualidade da vacinação está bem montada no Brasil, e a rede de vacinação funciona bem. Mas ainda faltam vacinas para doenças complexas, como malária, a doença de chagas,leishmaniose, dengue – para esta parece que terá em breve uma vacina. Se tivéssemos as vacinas, seria mais fácil intervir na área da saúde sem mexer nas condições sociais. As doenças que podem ser prevenidas com a vacinação estão controladas, como a varíola, a hepatite e a meningite. 

IHU On-Line – É possível estimar qual o índice de mortalidade por conta das doenças tropicais?

Carlos Henrique Nery Costa
 – Depende da doença. Os índices de morte por causa da doença de chagas e da esquistossomose continuam altos. O índice de mortalidade por causa do calazar é de 5 a 10%, mesmo com o diagnóstico feito e a doença tratada. Não tenho ideia de quantas pessoas morrem, porque ninguém conhece de fato a realidade das favelas. A discussão que estamos promovendo das doenças tropicais voltada para as cidades ainda encontra muita resistência, porque quase todos os médicos são treinados a tratar doenças infecciosas e parasitárias. Os médicos não sabem lidar com outros fatores externos, como a violência que também gera problemas de saúde. Por isso é importante desenvolver um trabalho com as diversas especialidades médicas em conjunto com os urbanistas, sociólogos, arquitetos, antropólogos para colocarmos em discussão as doenças tropicais que predominam nas favelas. É isto o que estamos propondo para a Sociedade Brasileira para o Progresso e a Ciência – SBPC: estudar a saúde nas favelas e nas grandes cidades tropicais. Esse é um passo importante a ser dado para compreendermos esse problema, que é gravíssimo, mas que ainda não temos conhecimento da sua dimensão. 

IHU On-Line – Como as doenças tropicais são abordas em outros países? Além do Brasil, onde mais podemos perceber a proliferação dessas doenças? 

Carlos Henrique Nery Costa
 – A Aids é um exemplo de como as doenças tropicais se proliferaram. Os países desenvolvidos, de modo geral, reagem com muita tecnologia e conhecimento. Doenças como a de Chagas, que é recorrente em cidades do interior, migraram da América Latina para os EUA e a Espanha junto com os trabalhadores. Geralmente, a transmissão acontece através da doação de sangue contaminado. Como nesses países não existe a triagem para a doença de Chagas, porque ela é uma doença característica do Brasil, acaba-se criando um grande problema de saúde pública nos países devido à transmissão da doença. A tuberculose também voltou a crescer depois da Aids.

Os países ricos lidam com as doenças tropicais através da ação das indústrias farmacêuticas. A ótica deles é assistencialista, ou seja, não é uma ótica de erradicação do problema principal, que é a pobreza, situação que é causada pela política econômica internacional. Por isso eles não enxergam os problemas oriundo dessa situação econômica, não comentam e nem gostam de comentar.

IHU On-Line – Quais os maiores desafios do Brasil para erradicar as doenças tropicais?

Carlos Henrique Nery Costa
 – O Brasil por ser, em minha opinião, o mais proeminente das nações tropicais, por ser a maior nação tropical, o quinto maior país do mundo e por ter um parque tecnológico razoavelmente desenvolvido, apesar das precariedades, tem condições de liderar a investigação e o combate das doenças tropicais no mundo. Até agora, todo o conhecimento a respeito das doenças tropicais é oriundo do Norte. As descobertas em relação aos tratamentos vêm dos países ricos, juntamente com a ótica deles, lógico, de consumir medicamentos. 

Mas está na hora de reverter esse quadro. Brasil, Índia, Austrália, Arábia Saudita e México já têm riquezas suficientes para fazer um grande consórcio de pesquisa voltado para essas doenças, liderar a pesquisa da malária, da leishmaniose, da dengue. Esses países têm condições de estabelecer políticas que sejam realmente eficazes para os planos urbanos. O Brasil pode liderar as políticas para lidar com as favelas e criar novos mecanismos de combate à Aids. O país pode aparecer pela sua proeminência e unificar os trópicos dando uma unidade cultural e climática a eles. Essa reapropriação dos trópicos por tropicais é fundamental. Até hoje nós vemos os trópicos através do espelho do Norte. Nós conhecemos a Índia pelo que é publicado na imprensa europeia, ou seja, pelas percepções culturais dos europeus.

Um dos aspectos mais agravantes é não só a distância entre os centros produtores de ciência e tecnologia, mas principalmente a “inapropriedade” das criações biotecnológicas do Norte, que são aplicadas nos trópicos. Temos de priorizar os nossos problemas a partir da nossa ótica e tentar encontrar soluções adequadas para a nossa realidade. No reviver e renascer dos trópicos, a partir de uma conjunção de todos os trópicos, poderemos resolver vários problemas nas diversas áreas (saúde, agricultura, arquitetura etc.).


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